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O muro, o lúdico e seus elementos de transição

Atualizado: 6 de jun. de 2019

Por Pedro Siqueira Lopes


A individualidade e a competitividade são elementos chaves na formação de um sistema baseado no consumo. A principal problemática nesse contexto capitalista é quando os interesses individuais de uma elite econômica minoritária se sobressaem aos direitos coletivos do restante da população. Direitos esses que deveriam nortear as decisões políticas que impactam diretamente o planejamento dos espaços urbanos.

Um fenômeno que tem aumentado nesse cenário e ilustra de modo prático e formal as consequências do atual ode ao individual, é a aparente necessidade de se recolher dentro dos feudos modernos autossuficientes chamados de condomínios ou loteamentos fechados.

Esse movimento demonstra claramente que, na busca por segurança e conforto, boa parte da população (não mais apenas quem controla o poder econômico, mas quem o aspira a ter, vulgo classe média) está disposta a abrir mão conscientemente de um elemento vital para a materialização do conceito de cidade: a imprevisibilidade urbana.

Existe, porém, outro fenômeno (consequente do descrito acima) que atua como intensificador para o objeto de estudo e fomenta ainda mais a discussão social aqui proposta. Os condomínios fechados estão se afastando dos centros considerados históricos. Para fugir da agitação cotidiana há uma migração espontânea para áreas periféricas das cidades. Consequentemente os semi-quase-novos burgueses estão dividindo espaços com outras esferas sociais, de menor renda, marginalizadas historicamente pelo próprio poder econômico que agora os procura. Notou-se então a necessidade de discutir tal evento, mais especificamente os espaços públicos, que servem de transição entre extremos de realidade.

O propósito do presente artigo não está em focar nos motivos de tal acontecimento, mas em seu efeito imediato e à longo prazo, a fim de encontrar um elemento síntese e desenvolver instrumentos que possam oferecer uma alternativa formal para tal manifestação.

Mesmo com todo discurso social e teórico é necessário ainda trazer esse diálogo para a realidade arquitetônica. Procurou-se então um elemento ou símbolo que sintetize essa ideologia de forma concisa e passível de interferências físicas.

"Uma cidade nasce do desejo de os homens estarem juntos". (Paulo Mendes da Rocha)

O muro

Sendo assim, o muro aparece como modelo para ilustrar tal discussão. Historicamente nasceu como consequência da necessidade da privatização de um espaço. Desde então tem adquirido várias facetas e significados dentro do contexto urbano. A crítica feita aqui é que, nos últimos anos, em favor da interdependência das tribos urbanas, o muro vem sido utilizado com apenas uma finalidade, com a intenção única de segregar.

Apesar de soar utópico, o ideal cooperativo dentro do sistema individual existente, seria apenas mais uma evolução do significado de “muro” na narrativa humana. Historicamente este elemento simples de construção já teve diversos significados e finalidades.

Nas Cidades-Estados gregas serviam para se blindar umas às outras; era usado como proteção contra os bárbaros no império romano; na Idade Média delimitavam os feudos e castelos fortificados; após as expansões militares e comerciais começaram a se expandir pela necessidade de abrigar uma nova classe ascendente, o proletariado; chega-se assim a cidade industrial, mais aberta ao fluxo de pessoas, com amplas avenidas, e onde os muros limitam mais a cidade, mas sim dos lotes privados; finalmente, como consequência dessa evolução urbana, temos a cidade chamada contemporânea, onde a tecnologia abreviou a ideia de tempo e interiorizou o conceito de público.

“A cidade se acelera, suas pessoas andam a passos largos e apressados; a cidade é tomada pela pressa e pela velocidade. A cidade não é mais contemplativa e sim, passageira. Ela se enfeia pelo esquecimento e o acelerar da vida já anunciada nos finais do séc. XIX. Como consequência, a vida social começa a se interiorizar, o espaço público perde seu significado e o burburinho tem lugar agora atrás dos muros das casas, no seu interior mais requintado do que o ambiente urbano. Os muros agora protegem o lote, o pequeno feudo de cada um, dos horrores da cidade moderna.” (DIAS, 2004).

No Brasil, essa linha de evolução cronológica ganha maior complexidade, devido ao fato das cidades aqui já nascerem como representação espacial das diferenças de um povo tão heterogêneo. A escravidão e a necessidade de manter privilégios, dá ao muro representação única e amplificada: a separação de classes.

Mas apesar da cínica sensação de vivenciarem mundos totalmente diferentes mesmo coabitando o mesmo espaço, o que mais chama a atenção nesse fenômeno é a relação que cada classe mantém com a cidade que está ao seu alcance.

Quando se anda por bairros carentes observa-se como a rua e os espaços públicos como um todo, apesar da falta de infraestrutura, são apropriados pela população, sendo sentados na rua conversando, jogando bola no terreno vazio ou empinando pipa com os amigos, trazendo a sensação de vida e movimento a uma cidade antes fria e estática. Em contraposição, a vida “urbana” de dentro do condomínio, passa a ser extremamente controlada, sem a possibilidade, capacidade ou vontade de ocupar a cidade, já que ali ela é sustentada e administrada no âmbito privado (que apesar de ganhar em recursos limita em relações), trazendo inclusive uma noção contraditória de insegurança e hostilidade em seu entorno. Basta andar entre esses muros para sentir a sensação que seus limitados espaços públicos passam ao transeunte.

O excesso da polarização econômica, social e ideológica (causa e sintoma dessa “cidade dos muros”) potencializa o sentimento de “patriotismo” regional baseado nas classes sociais, onde se procura defender o estilo de vida e costumes destas castas historicamente pré-estipuladas, desencadeando na ausência de interesse pelo externo e na falta de informação sobre as singularidades de outras culturas. Tal ignorância pode dar base e combustível para um ódio infundado pelos que não fazem parte da mesma bolha.

A intenção aqui não é negar a essência limitadora do muro, mas apenas questionar a forma que esse limite é tratado quando relacionado com o espaço público. É se utilizar de uma barreira física para derrubar barreiras invisíveis, reinterpretando seus usos e características.


O lúdico

Mas de que maneira é possível questionar essa realidade já enraizada em nossa cultura?

Chegou-se então a outra palavra chave nesse processo de desconstrução (literal e metafórica): o lúdico. Seria através dele que se “ridicularizaria” não apenas o conceito de muro segregador, mas a alienação social e humana causada por ele.

O que significa e como a arquitetura se faz lúdica? Quais elementos físicos se fazem presentes e como estes se relacionam entre si e com o usuário para materializar essa intenção?

A atividade lúdica já foi fonte de discussão e análise nas teorias de diversos pensadores, devido à sua relevância na formação e desenvolvimento emocional do ser. Apresentaremos rapidamente as definições de dois estudiosos da área: Donald Winnicott e Friedrich Schiller.

É importante entender que a prática lúdica seria, em primeiro plano, uma experiência criativa, onde aplicamos uma forma básica de viver em busca da plenitude humana.

O brincar teria caráter de transição e para Winnicott (1975), transicional não é objeto ou fenômeno propriamente dito, mas sim uma característica de seus usos.

Todo ser constituído de unidade possui uma realidade interna, que interage com o ambiente da realidade externa, que serão mais bem explicados pela filosofia de Schiller. De acordo com ambos os pensadores, existiria, porém uma terceira área de experimentação: a realidade lúdica, que engloba, preserva, harmoniza e conecta as outras (WINNICOTT, 1975).

Schiller foi um grande estudioso de Kant, que possui uma teoria de severa separação entre natureza e razão (EAGLETON, 1993). Schiller não apenas critica essa visão, como também propõe uma nova estética transicional e intermediária entre essas áreas (BELO e SCODELER, 2013).

Existem no homem dois impulsos básicos, o sensível e o racional. De acordo com Schiller (1795) existiria ainda um estágio intermediário chamado de impulso lúdico e através dele seria possível unir as duas qualidades mencionadas, sem negar ou sobrepor uma sobre a outra.

As semelhanças de pensamento entre Winnicott e Schiller, se mostram na valorização do espírito criativo e na expressão da autenticidade própria. Apresentam-se também no desejo de pensar em um espaço transicional e intermediário, representado pela brincadeira, pelo jogo e pela arte.

O lúdico teria a função de conectar aspectos por si mesmos dissociados da natureza humana, tendo ambos, como campo de ação, uma zona intermediária que possibilite essa harmonização entre o dentro e o fora, entre a realidade interna e a compartilhada.

Para trazer esse impulso ao contexto arquitetônico são necessários elementos de transição entre dois objetos vistos até então como opostos. O lúdico está na capacidade de integrar elementos que, à primeira vista, se negam (homem x natureza, interno x externo, escuridão x claridade, regra x desordem, etc).

Um belíssimo exemplo de aplicação prática para toda a teoria aqui discutida são os trabalhos feitos por Lina Bo Bardi. Analisando suas obras e seus elementos (em especial o complexo do Sesc Pompéia em São Paulo), e tendo estudado as teorias e filosofias de pensadores sobre o impulso lúdico, fica claro a capacidade da arquiteta em fazer de seus ambientes, objetos de formação experimental do indivíduo.

O diferencial dos projetos de Lina está na capacidade que seus espaços têm de serem ocupados democraticamente. São locais pensados e utilizados para e pelo homem. Como que se fossem personalizados para cada usuário, sem necessidade de limites hostis, onde se fazem possíveis o encontro humano, a experiência urbana e a troca de informações.

O atrativo da obra do Sesc Pompéia em particular está na sutileza utilizada por Lina para destreinar nossos sentidos, fazer a transição ligando elementos não “ligáveis” e experimentar uma nova visão de mundo.

Sendo assim, a intenção arquitetônica e urbanística deve buscar revelar ao usuário as características essenciais do entorno urbano de onde vive. Tomar cuidado no questionamento deste poder. Não “desplugar” este de sua realidade interna. Mas apenas oferecer caminhos que não necessariamente aceitem certezas absolutas. Ou seja, brincar com a imaginação e possibilidade dos espaços e com a característica lúdica de seus elementos.

Dessa forma talvez os espaços (públicos e privados) possam atuar como agentes modificadores e questionadores de uma sociedade que implora por propulsores sociais, derrubando pré-julgamentos baseados em opiniões vazias e fomentando novas gerações interessadas em construir ideologias fundamentadas em informações adquiridas pelas trocas de experiências nesses novos ambientes. Pequenos nichos de respiro ideológico e democrático em meio ao caos da desordenada e fria cidade moderna.


 

Referências

BELO, Fábio e SCODELER, Kátia. A importância do brincar em Winnicott e Schiller. 2013. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382013000100007>. Acessado em 20 dez. 2015.

DIAS, Fabiano. O muro (e o arquiteto). 2004. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/04.048/2008>. Acesso em: 15 jun. 2016.

EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas. Weimar, 1795.

WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Londres, 1975.

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